A música brasileira se despede de uma de suas figuras mais vibrantes e autênticas. Preta Maria Gadelha Gil Moreira, conhecida artisticamente como Preta Gil, faleceu neste domingo (20), aos 50 anos, em Nova York (EUA), após uma longa e corajosa luta contra um câncer no intestino, diagnosticado em janeiro de 2023. A artista estava a apenas 19 dias de completar 51 anos. Sua partida enlutou fãs, colegas e admiradores de uma trajetória marcada por irreverência, pluralidade e compromisso com a liberdade de ser.
Nascida em 8 de agosto de 1974, no Rio de Janeiro, Preta Gil foi muito além do sobrenome que a ligava diretamente a um dos pilares da MPB, seu pai, Gilberto Gil. Ela trilhou seu próprio caminho na música, nas artes e no entretenimento, tornando-se símbolo de uma geração que encontrou nela voz, acolhimento e representatividade.
A música como palco da alegria e da diversidade
Desde o início de sua carreira fonográfica, em 2003, com o álbum Prêt-à Porter, Preta Gil fez da alegria um traço essencial de sua identidade artística. A capa icônica do disco, em que ela aparecia nua, simbolizava a liberdade com que conduzia sua arte e seu corpo. A música “Sinais de Fogo”, cedida por Ana Carolina e Antonio Villeroy, foi o primeiro grande sucesso que projetou Preta nacionalmente, sem depender diretamente da sombra paterna.
Dois anos depois, em 2005, lançou Preta, seu segundo álbum, onde estreitou laços com músicos de sua geração, como Davi Moraes (autor da faixa “Medida do Amor”), Pedro Baby e Betão Aguiar. Embora o disco tenha tido repercussão mais discreta, Preta redirecionou sua carreira com sabedoria.
Foi em 2007, com a estreia do show Noite Preta, que a cantora reencontrou seu público de maneira explosiva. A apresentação, inicialmente realizada em casas menores da zona sul carioca, ganhou força através do boca a boca — incluindo elogios de figuras como Lulu Santos — e acabou se tornando um fenômeno cult, estabelecendo residência na boate gay The Week. A relação com o público LGBTQIA+ se intensificou a partir daí, consolidando-a como musa e aliada incondicional da comunidade. O espetáculo deu origem ao álbum e DVD Noite Preta Ao Vivo, lançado em 2010, com destaque para a dançante “Stereo”, novamente composta por Ana Carolina e Villeroy.
O Bloco da Preta: festa, rua e resistência
Em 2009, a artista expandiu sua proposta festiva para o Carnaval. O Bloco da Preta nasceu como um show e rapidamente se transformou em um dos blocos de rua mais populares do Rio de Janeiro, a partir de 2010. Com presença marcante, fantasias ousadas e repertório animado, o bloco se tornou uma celebração da diversidade e da liberdade, reunindo milhares de foliões nas ruas cariocas a cada ano.
A apresentação comemorativa dos 10 anos de carreira da cantora, em 2013, culminou na gravação do álbum e DVD Bloco da Preta, quinto título de sua discografia, captando ao vivo a energia contagiante que se tornaria marca registrada da artista.
Além do palco: empresária, produtora e voz potente
Antes de subir aos palcos como cantora, Preta atuou nos bastidores da indústria cultural. Ainda jovem, iniciou sua trajetória como estagiária na agência DM9, de Nizan Guanaes, e passou a produzir videoclipes como sócia da Dueto, de Monique Gardenberg. Essa experiência moldou sua visão empreendedora, que seguiu como base sólida ao longo de sua carreira.
Em 2012, ela lançou Sou como Sou, disco que trouxe mais uma parceria com Ana Carolina (“Batom”, composta com Chiara Civello e Diana Tejera). A cada trabalho, Preta reafirmava sua busca por identidade própria e pluralidade sonora.
Seu último álbum de estúdio, Todas as Cores, saiu em 2017. A obra foi um manifesto à inclusão e à diversidade, com músicas inéditas e parcerias de peso. O single “Vá Se Benzer”, gravado com sua madrinha musical Gal Costa (1945–2022), ecoava como um grito de resistência contra a intolerância. Já “Decote”, com Pabllo Vittar e participação instrumental de Dudu Nobre, foi mais um sucesso que unia samba, batida eletrônica e empoderamento feminino e queer.
Fora dos palcos, Preta também atuou como empresária de sucesso. Fundou, em 2017, a empresa Music2Mynd, voltada ao mercado de música e marketing, fortalecendo ainda mais sua presença no universo do entretenimento.
A despedida em família e a consagração final
O último momento de Preta Gil nos palcos foi simbólico e emocionante. Em abril de 2025, ela participou de um show da turnê Tempo Rei, de Gilberto Gil, no Allianz Parque, em São Paulo. Ao lado do pai e do filho Francisco Gil, interpretou “Drão” — canção composta por Gil para Sandra Gadelha, mãe de Preta. Um ciclo familiar e artístico se encerrava ali, comovendo o público.
A trajetória de Preta Gil é marcada por sua coragem em ser quem era: uma mulher livre, negra, fora dos padrões impostos pela indústria, que celebrou seu corpo, sua sexualidade, seu talento e sua ancestralidade com orgulho. Ao longo de sua vida, Preta construiu não apenas uma discografia, mas um espaço de pertencimento, alegria e festa para muitos que, antes dela, não se viam na grande cena musical.
Sua morte encerra uma jornada física, mas eterniza uma voz que continuará ecoando em blocos de rua, em playlists festivas, em palcos diversos — e, principalmente, no coração de quem aprendeu com ela que viver é também resistir com alegria.